quinta-feira, 21 de dezembro de 2006

A aridez da sala de espera

Pessoas se evaporam. Você conta até dez, abre os olhos e não há mais nenhuma pista. Nenhuma. Só o gosto amargo do fim do ano. Para me distrair do lado de fora dos vidros embaçados, saio pelo centro vagando em busca de um tênis preto novo que tenha absorção de impacto. É uma pequena obrigação para um trabalho que vem por aí e uma grande necessidade de esvaziar a cabeça. No contrafluxo da crise natalina em estado pleno, preciso atravessar uma corrente de sorrisos com botox natural que marca a véspera da entrega de presentes. Não são apenas blocos humanos se deslocando de várias direções, mas também suas sacolas vermelhas que formam o cimento e dão liga aos blocos. Vendedores na rua, e não dentro das lojas, como pequenos pedaços de carroça na frente dos bois. A cena mais aterradora, no entanto, é a de um garoto de uns 13 anos dançando "Um Minuto para o Fim do Mundo", do CPM22, descalço, em frente ao Mini System de uma loja popular. Abrindo os braços, cantando alguns trechos, franzindo a sombrancelha sempre de olhos fechados e empunhando como microfone um pequeno inalador de benzina.
Levo pouco tempo até achar o que quero. Promoçãozinha acessível, modelo razoável também. Pago, boto a viola na sacola e vou brindar a chegada da chuva com um frugal suquinho de abacaxi. Daqueles pouco recomendados para diabéticos, cortesia (ou falta de aviso) do tio da vitamina. Mas era o que o gosto amargo pedia.

Na madrugada seguinte, mais precisamente às 4:55 a.m., toca o telefone.
"Zzzzzzz... alô?"
"Htmaretzdetralalatchibumtekjd..."
"Desculpa, não entendi nada. Quer falar com quem?"
"Natrbakterlipwsapopodjdkjihihihehehakja..."
"Não é aqui", e desligo.
Toca de novo. Encarrego a secretária eletrônica de atender, mas não deixam recado. Em seguida, começa a chamar pela terceira vez.
"Alô. Humpf."
"Qwertypoiuytasdflokdidfna..."
"Vai encher de bizarrice o Natal de outro infeliz, filho da puta!"
Botão Talk mode off.


Mal posso esperar pelo doce mês que vem.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2006

Tom Waits - Swordfishtrombones



Começa pelo óbvio: um cachorro molhado bufando uísque e estalando os dedos. O paletó bege, quarado ao sol em varal de improviso, exala aromas de fumaça e de um milharal mal cuidado. A cabeça tamborila impiedosamente a cada centímetro que se distancia do chão. O corpo está cheio de pequenos hematomas de dias atrás, amarelados e solenemente ignorados. O adubo seco encrustado nos vãos da sola do mocassim se desprende aos poucos. A cachorrada - a de verdade - uiva com languidez lá dos fundos. Soa como cordas de violinos afinadas antes do concerto. Mastins napolitanos de fraque e galgos de cacharrel, todos com a garganta entupida de pigarros e se empertigando até o rufar do tornado. Os comprimidos para aplacar a labirintite se dissolveram no calor úmido - fundiram-se numa gosma uniforme de tom sujo e esbranquiçado. "Melhor guardar de volta", pensa. A mão faz um gesto curvado para baixo, supondo que o recipiente vá cair dentro do bolso ao ser largado pelos dedos. No entanto, a desatenção trêmula faz o vidro escorregar por fora, se despedaçando no ladrilho morno. A calça de cinto desafivelado pende para baixo, pesada. Os bolsos transbordam de papéis socados - talvez por isso o trajeto de retorno do remédio tenha terminado em acidente. Bolas e tiras amassadas de papel quase que escapam sozinhas dos bolsos, como líquens invadindo o muro do vizinho. "Melhor colocá-las de vez para fora", rosna o Rottweiller, com voz de poucos amigos.