quinta-feira, 22 de dezembro de 2005

Pequenos votos de fartura e esperança

Os maus saudosos vão saber apreciar esse final.
O abraço no porco-espinho certamente será aplicado e multiplicado nesse final.
O pneu do caminhão de mudanças corre o risco de furar nesse final.
A hora de retirar o gesso e as gazes pode ser agora, nesse final.
Lágrimas de vinagre e uma conspiração muda poderão se formar ou serem adiadas nesse final.
Enquanto isso, antes do começo encerrar de vez o final, pessoas espertas discutem papel higiênico.
E Deus continuará sendo um cachorro e um cristal.

terça-feira, 13 de dezembro de 2005

Apologia à rinite faz bem aos ouvidos

Bom, passaram batido por aqui quaisquer comentários sobre os maravilhosos shows do Claro Q É Rock no final do mês passado ou mesmo sobre a vinda do Pearl Jam. Estes últimos, embora tendo perdido, acompanhei passivamente o set list daqui de casa por morar perto do estádio. Pra consolar, vou recorrer ao velho e divertido post da trilha sonora dos últimos dias:

Swervedriver - "Mezcal Head" e "Raise". Baixei os dois primeiros discos dessa banda britânica, extremamente criativa durante os anos 90 e solenemente ignorada pela minha curiosidade até pouco tempo. Eu sabia mais ou menos do que se tratava e tinha preguiça: o rótulo shoegazer pra mim era quase sinônimo de autismo. Aliás, ainda é. Como há exceções que confirmam a regra, adoro My Bloody Valentine e agora estes cabeludos totalmente sem naipe. Gosto disso: bandas de gente com cara de 'normal', ou daquelas que você vê uma foto e não saca de cara o poder sônico. O Swervedriver batia cartão no Lado B da fase boa, quando um bando de zé-ninguéns de Oklahoma ou de Oxford eram despejados nos lares mais sortudos. O som é altamente estradeiro, tem muita pegada. Letras sobre mustangs e desertos. Vocal melódico e enterrado em milhares de detalhes de guitarras que, ao contrário das bandas 'próximas', te cativam e nunca entediam.

Social Distortion - "Somewhere Between Heaven And Hell". Sem palavras. Emocionante. E há anos que eu adiava a aquisição deste aqui. Uma definição simples e rasteira: o Mike Ness é um encontro do Joe Strummer com o Johnny Cash. Mas ainda prefiro o outro disco deles que tenho, o "White Light White Heat White Trash".

T. Rex - "Electric Warrior". Róque jurássico, afetação e diversão garantidas.

Detalhe: esses dois últimos eu comprei num sebo a preço de banana. Aliás, no final de semana passado tive o deleite de ler uma matéria na Revista da Folha com um percurso por alguns sebos daqui de SP. O prazer veio não só pelo meu insalubre hábito de fuçar os carcomidos estabelecimentos sempre que rola a equação [grana x paciência]², mas também por conhecer a maioria dos lugares listados e, principalmente, por estar familiarizado com esse prazer de encontrar um livro ou disco absurdamente barato, daqueles que o vendedor não tem a menor noção de quanto valeria numa dessas lojas virtuais gringas ou mesmo daqui. Aparecem direto cds ou livros usados com estado de novos, mas com preço de usados. Como viciado em música e sedento por pequenas descobertas inusitadas, já achei muita gente boa como Nine Inch Nails, Superdrag, Van Morrison e até a PJ Harvey dando mole. Também já tive umas desilusões, como ficar embasbacado ao achar dois cds clássicos do genial freejazzista Ornette Coleman por quinze pilas cada e, ao levar até o balcão, me deparar com um talho grotesco na mídia de cada um deles. O único efeito colateral preocupante disso tudo, além da maldita alergia, é o risco de se adquirir o senil costume de analisar longamente cada item pensando no custo-benefício. Mesmo que esse 'achado' seja um resumão de vestibular do José de Alencar ou um poster do Vanilla Ice.

Pra terminar, a dúvida: por que a redação da tal revista não investe mais nessa linha 'opções e roteiros insólitos em SP' e larga a mão de vomitar sempre como matéria de capa o catálogo da Dolce & Gabbana?!

sexta-feira, 9 de dezembro de 2005

Sessões no deserto

É aquela sensação estranha de acordar sem as suas roupas exclusivas de festa, num local ermo, com um velho apache observando de longe sem demonstrar qualquer expressão no olhar. É o veneno sendo entregue como amostra grátis na compra de três sacos de polvilho. É quando aquelas mesmas gralhas de antes enjoam de seus charutos e sujam todas as suas cuecas, passando a usar as mesmas do avesso. Pomada para queimaduras, só daqui uns dois mil metros adiante. Água é mais cara que o santo daime. Você acordou e te vestiram de pé-de-pano. Seu novo melhor amigo é um rotundo pobretão. Você cultiva um par respeitável de bigodes assimétricos e o espelho despenca posições na sua hierarquia pessoal de utensílios domésticos prioritários. Elimine o máximo de supérfluos possível e encontre o crânio enterrado: sua missão será desenferrujá-lo.

segunda-feira, 14 de novembro de 2005

Entre Beatles e Franz Ferdinand, o caminho do meio



Dentre os cds lançados este ano, dois que mais me agradaram são obras de tiozinhos britânicos com mais de 25 anos de carreira nas costas. E não estou falando dos Stones nem do Macca de Liverpool. Até respeito, ouvi dizer que lançaram os discos mais regulares de sua produção recente, mas o que me interessa deles já está feito e vai até o começo dos 70's.

Já os que prestaram atenção em Waiting For The Siren's Call, do New Order, e Playing The Angel, do Depeche Mode, certamente sairam ganhando. As duas bandas apresentam vários pontos de intersecção. Surgiram no pós-punk/new wave em 1980, se tornaram nomes fundamentais no híbrido de rock/pop com música eletrônica e foram da extravagância ao perreio dos excessos - dois deles valem ser lembrados: a gravação de Technique (89), do New Order, foi na hedonista ilha de Ibiza. Praticamente faliu a Factory, gravadora deles na época. Precisa dizer algo mais? Sim, precisa: as tentativas de suicídio de Dave Gahan, vocalista do Depeche, à base de champanhe francês e vidros e vidros de calmantes. Como se fosse pouco, os responsáveis por "Blue Monday" e "Strangelove" deram alguns passos em falso nos anos 90 com discos intercalados por grandes hiatos, idas e vindas de rehabs, saídas de integrantes e, principalmente, o flerte com a repetição e com a menor relevância no cenário pop.

O curioso de ambas as trajetórias recentes é o fato de que mesmo com tanta dispersão de egos e esparsa produtividade, nenhum deles declarou o encerramento das atividades. Mesmo com projetos paralelos, como os descartáveis Monaco e Electronic, o inexpressivo The Other Two (esses três com membros do N.O.); ou o próprio mediano álbum solo de Dave Gahan (a exceção é o derivativo Recoil, do talentoso ex-Depeche Alan Wilder). Se observarmos essas atividades no contexto atual, em que as bandas prestam contas lançando dois belos discos, fica fácil supor que quase tudo não passou de entretenimento sabático orbitando as atividades principais. Como se fosse sempre sabido o inevitável retorno em alguma hora, apesar das inúmeras ressacas físicas e morais. Ou como dizia Bernard Summer do New Order numa entrevista em 2001, época de retomada da banda: "Começamos a sentir saudades uns dos outros, mas levou 8 ANOS pra isso acontecer".

O ano de 2001, portanto, também representou algo em comum: as duas bandas, reduzidas a trios, arrumam a casa e lançam discos que receberam pouca atenção (Exciter do D.M. e Get Ready do N.O.). Já as apresentações continuavam cheias, porém menos burocráticas do que a de contemporâneos como um U2, por exemplo. Fiquei observando com certa distância. Até comprei o Get Ready, com um punhado de canções bacanas, participação do Billy Corgan e o escambau, mas que convence apenas se for colocado à parte do que a banda fez de melhor e apenas junto dos projetos paralelos e do fraco antecessor, Republic.

Eu arrisco dizer que as duas bandas são provavelmente as únicas que gosto desde o momento em que comecei a me interessar por música até hoje. Quando eu tinha cerca de 9 anos, o tecnopop (por falta de nome melhor, vai esse) era bem popular no Brasil. Durante a tarde, depois da escola, eu passava horas com o dedo no REC e o K7 no ponto esperando que tocasse na rádio algo parecido com Information Society, A-ha ou Technotronic para depois deixar rolar naquele walkman style paralelepípedo e, quem sabe, fazer bonito nas festinhas da classe. Isso, claro, antes do rock voltar com mais força ao público maior, pouco antes do Rock In Rio II, de Seattle, etc. Conheço muita gente de idade próxima à minha com uma historinha bem parecida, por isso melhor economizar na nostalgia e simplesmente resumir assim: foi nessa 'entressafra subjetiva' que descobri a Moda Passageira e a Nova Ordem.

Aliás, engraçado interpretá-los pelos nomes. Sugerem o efêmero, o presente, ainda que suas músicas sejam sustentadas paradoxalmente pela manutenção daquilo que há de mais descartável no pop somada a características que tornam as duas bandas ainda modernas. Talvez mais que um Killers ou um Franz Ferdinand a meu ver. A manipulação eletrônica, que os torna reféns da tecnologia e, por consequência, sempre se arriscando a soarem desmedidamente datados ou renovados.

O New Order intensificou cada um de seus ingredientes em seu novo disco. Mais guitarras, bases eletrônicas mais gordas, melodias mais definidas, o baixo do Peter Hook como sempre em destaque. Dá pra sacar que aproveitam bem os recursos que têm hoje, mesmo mantendo vários aspectos que já apareciam desde os 80's, década a qual geralmente são relacionados. Ou seja, esse Waiting... ao tornar a banda mais compactada, consegue simultaneamente fazer o New Order em 2005 parecer datado e atemporal, ousado e consciente de que está envelhecendo. A única gordura que poderia ser cortada é a faixa "I Told You So", lá no meio, com uma brincadeirinha boba de iniciantes no teclado.

Já o Depeche segue a linha mais sombria, pesada e interessante que iniciou a partir de Black Celebration (86). Assim como o New Order, eles foram sempre se atualizando tecnologicamente, usaram mais guitarras às vezes, flertaram com o trip hop e com o industrial (subgêneros altamente ligados aos anos 90, que de certa forma o D.M. também influenciou). Ao mesmo tempo mantiveram características próprias como as texturas de teclados e programações, além dos vocais dramáticos de Gahan sempre exorcizando alguma bad trip, celebrando e/ou lamuriando-se por não ser santo. Um parêntese: o principal compositor sempre foi o guitarrista/tecladista/eventual vocalista Martin Gore, mas era o frontman Gahan quem melhor interpretava essa tríade sexo-religião-drogas musicalmente e existencialmente. Na verdade, o charme da banda sempre foi esse. Como se o ciclo interminável entre o excesso, o baque no fundo do poço, o silêncio pós-vertigem e a redenção se intercalasse entre as batidas mais pesadas e dançantes, as faixas mais soturnas e as mais leves e introspectivas. Playing The Angel traz cada um desses momentos se alternando mais uma vez, como em "Suffer Well", fazendo a melancolia e o vazio parecerem atraentes como o prazer do perigo.

Quem dera me tornar um tiozinho de fôlego como estes!

quarta-feira, 19 de outubro de 2005

A paciência enfrenta o rock progressivo

O primeiro toque ninguém sente. O segundo talvez seja aparente. Mais uns quinze sintomas produzem o doente. Se um grupo de soldados passa cantando marchinhas e um recruta atravessa o tempo, que castigo merece? Se continuar cantando atravessado até a hora de dormir, poderá até ser condecorado. Só então ele vai perceber o sentido de se pular de agosto até meados de outubro. Setembro parece elegante como sujeito oculto. De assimérico, pelo menos, não vão me acusar. Afinal, já arrastei a cadeira três vezes na direção do canto direito da sala e mais três vezes na do esquerdo. Já descarreguei minha responsabilidade: acionei o alarme do carro um número ímpar de vezes; durante a viagem inteira de ônibus abri minha mochila de cinco em cinco minutos e conferi que estava tudo lá; bem na cena-chave do filme eu precisei me certificar que o nove e quarenta e cinco virou nove e quarenta e seis no relógio de parede atrás da TV. Descobri que tenho muito mais energia armazenada do que eu imaginava. Em compensação, perdi a fala do Jack Nicholson. Dá pra desligar o metrônomo, por favor, pra que eu possa dormir?

quarta-feira, 31 de agosto de 2005

Keep swimming

Essa semana sonhei que começava a fazer natação. Era a minha primeira aula, na verdade, e de cara já fiquei satisfeito por poder usar bermuda ao invés de sunga. A piscina também era diferente, mezzo olímpica (com raias e tudo mais) mezzo daquelas profundas de salto ornamental e que não sei como chamam oficialmente. Mas o que mais me surpreendeu mesmo foi o belo desempenho para quem estava começando no dia. Em vez de segurar na beirada e bater as pernas pra fazer espuma ou de nadar que nem pato segurando aquelas pranchinhas, eu passeava com facilidade de ponta a ponta e sem perder o ar. Nem a barriga de chope retardava. Lembro de nadar rapidamente e ouvir debaixo d'água altos elogios vindos do professor, na superfície. Fiquei tão empolgado com tudo aquilo que chamei amigos e familiares para verem o Maior Espetáculo da Terra. Que Circo Stankovich que nada.
Acordei dando muita risada e mais tarde veio a tão esperada constatação: é verdade, continuo realmente nadando. Bom lembrar disso às vezes. Num espaço delimitado, finito; metade submerso, metade à vista de quem quiser. Sem cobranças. Sem simuladão. Engolindo um tanto de água de vez em quando, mas prosseguindo, prestando atenção em mim mesmo para não bater a cabeça lá na chegada ou entrar na raia ao lado. Não há tempo para afundar ou pairar boiando. E cloro demais nos olhos é preguiça de paraplégico, seja lá o que isso queira dizer.

sexta-feira, 26 de agosto de 2005

The Kills - No Wow (2005)




Fisicamente, o cara lembra um pouco o Iggy Pop quando o grande maracujá do rock tinha uns 30 anos. A voz e a presença da garota - que felizmente abandonou os EUA e o emo-punk-pop lazarento do Discount - assim como as guitarras sujas e o minimalismo, lembram a PJ Harvey sem tanta sofisticação do Rid Of Me (93) e do último disco, Uh Huh Her (2004). Com essas poucas referências dá pra sacar um pouco do que se trata. Claro que torci o nariz quando ouvi falar de The Kills pela primeira vez. Tá, mais uma duplinha dinâmica criada em laboratório pela Folha de São Paulo. Admito também que a vinda da banda ao Brasil esse mês moveu um pouco mais a minha curiosidade. Mas ao deixar rolar esse que é o segundo disco deles, fui presenteado com uma despretensiosa seqüência de faixas que funcionam tão bem ao azedo acordar como num inferninho abafado (sempre quis usar esse tipo de clichê! He, he). Esqueça o hype, esqueça o White Stripes, temos aqui um belo e seco disquinho de róque.

quinta-feira, 25 de agosto de 2005

O mau exemplo

Ressentimento é um tupperware com arroz há semanas na geladeira e que não temos coragem de jogar fora. É algo tão vil e que ao mesmo tempo nos dá tanta força, que nos sentimos orgulhosos pela falta de pureza. É nobre como exibir um olho roxo e dizer: 'mas você devia ver como ficou a cara do outro sujeito, deve estar numa cama de hospital agora'. Sinto muito, sou ressentido sim, e é exatamente isso que me mantém bem intencionado. É a sensação que vai me fazer querer sair pela rua mais uma vez atrás de outra briga. Não fosse assim, ficaria em clausura, com cinco trancas diferentes, caixas de ovos isolando o som e com o ar condicionado no volume 10. Ressentimento me faz continuar querendo procurar um alvo, mesmo que desvie dos primeiros no começo, mesmo que o ânimo se disperse. Você reaprende a olhar o algoz na cara (ok, isso às vezes requer treinamento). Você volta a acordar de manhã na hora certa. Estranho seria se não sentisse o tal olho roxo latejando. Porque se uma pancada com soco inglês é a ação, a reação é mandar bombons e um enorme smiley. Apanhar é querer plantar o bem. Espera só pra ver. Se a felicidade sempre ofende, bem, que se fodam os ofendidos - tristeza demais cansa. Tá certo, não fui eu quem disse essa última. Mas que tem um belo fundo de verdade, isso tem.

sexta-feira, 19 de agosto de 2005

segunda-feira, 15 de agosto de 2005

Same old song and dance

Clichês e mais clichês e mais clichês e mais clichês e mais clichês e mais clichês. Tudo aquilo que você ouve por acreditar ser único, por acreditar que o momento é o que pede, por talvez fazer alguma diferença, tudo será repetido sem dó nem piedade. Não que eu nem você precisemos de dó ou piedade. Mas tudo o que você está ouvindo já foi pronunciado antes: as piadas, os impropérios, os elogios, os conselhos, as críticas, os gemidos da fornicação. Você simplesmente não se deixa abater (ou até deixa durante um tempo), mantém o sorriso desgastado e a expressão quase cínica de surpresa. Assim mesmo, não deixa de ser estarrecedor: as mesmas palavras, exatinhas, na mesma ordem, nenhum pontivírgula a menos. Uma folha no meio de cem fotocópias da mesma página. Sim, nada mais pertinente que uma metáfora clichê.
O milagre da multiplicação merecia um filme do Kubrick. Eu assino embaixo daquela famosa teoria não comprovada, a de que todas as combinações de acordes possíveis já foram criadas. Esse deslumbre todo, essas palpitações, essa indiferença, esse corte no supercílio, essa sensação de aprisionamento, essa cãibra na panturrilha, essas borboletas no estômago, esse 'o petróleo é nosso', essa vontade de comer a pipoca doce que vendem na porta do zoológico, esse inferno astral, essa comida nordestina. Tudo que nos faz sentir vivos (!) e de tudo isso a Madame Bovary, o Jung, o Nietzsche, o Beijoqueiro, a Terri Schiavo, o Paul Westerberg, um mico-leão dourado, a Aracy de Almeida e a Lucy Van Pelt já tiraram suas casquinhas assim como alguém tirou a deles.
De certa forma ainda estou voltando àquele tema do 'instinto'. Sem essa de seres ordinários e extraordinários, Fiódor. Me procura semana que vem. No dia em que isso me descer redondo que nem aquela cerveja, jogo o caderno em cima da mesa e pego o primeiro trem pras Maldivas. E não livre a sua cara disso, você é tão criminoso quanto eu.
Tom pseudo-hostil é a serventia da casa. E quem se conforma ganha mais uma estria para a coleção.

domingo, 14 de agosto de 2005

Coluna do meio

E aos poucos vou desovando a ninhada. Noites e mais noites sem dormir direito acabam perdendo a graça, então você vê que é hora de fazer a faxina e deixar as crianças brincando na casa do vizinho. A rabeira da tabela tá aí, é só você fingir que nada está acontecendo que a segunda divisão te engole como um maremoto. Mas como o campeonato é longo, não existe resultado imediato, tudo se equilibra na regularidade. Se ver como parte de um processo talvez ajude. Se o prazo estiver chegando ao fim, vamos jogar mais duas semanas para frente. Não confundir com protelar. Pragmatismo talvez seja melhor. Organizar o jogo mesmo que não chame a atenção da arquibancada, dar dois toques de lado e um pra frente. No meio da encruzilhada você vai achar tudo isso muito tedioso, modorrento, vai desejar profundamente matar o trabalho para pegar um cinema às 2 da tarde e rir dos carecas engravatados com menos idade que você. O desvio é sempre mais natural que a linha reta e, como repete aquele personagem insistente do Kerouac, não se pode ensinar uma nova melodia ao velho maestro. Talvez seja verdade, repetimos os mesmos vícios, mas as placas de trânsito começam a fazer mais sentido quando fazemos isso com mais qualidade. Parreira às vezes é simpático.

quinta-feira, 11 de agosto de 2005

Um Marques de la Colina e uma colher de pau

Ao sair de casa, no começo deste ano, um dos meus projetos (que ainda está em andamento) era aprender a cozinhar. Não digo que já virei um Olivier Anquier ou uma Dona Genoveva (como chamava mesmo aquela famosa velhota pioneira que ensinava receitas na Rede Record?), aliás estou léguas atrás de qualquer piloto de fogão mediano. Mas nesses poucos meses em que comecei a me atrever a ir além do miojão, descobri o pequeno prazer de sentir o cheiro do tempero refogando e o sabor da cerveja gelada deslizando goela abaixo. Claro, o tempo livre tá ajudando. Quando a agenda aperta, nem que seja uma vez por semana ou menos tá valendo. E não depende da presença de convidados de gala ou de folgados de plantão ou de quem você pretende desposar. Vai treinando antes do fatal golpe da águia.

Se eu tivesse um desses programas de TV durante a tarde, daria a seguinte receita:

Coloque as caixas de som na direção da cozinha e separe alguns cds. Comigo já deu certo gente bem diferente, como Afghan Whigs, Social Distortion e Paulinho da Viola. Hendrix e Stones também são uma boa. Imprescindível mesmo é a música estar ALTA. Abra bem a janela ou use o exaustor, ou de preferência os dois. Pegue a peça de carne ou frango e deixe descongelando, troque a água de tempos em tempos, e confira se a peça está desempedrando. Se você foi esperto o bastante para ter tirado do congelador de véspera, párabéns! Você está fora do clube dos finos apreciadores da culinária semi-rasteira. Só então abra a primeira da latinha de [preencha com a sua marca preferida]. Escolha o apoiador de copos mais estiloso. A diversão tá só começando. Como você é sagaz o suficiente, já sabe fazer um arroz, lavar umas folhas e refogar o que vier pela frente. Vamos pular essa parte, ou caso você seja um diletante como eu, peça ajuda ao Louro José. Enquanto algumas coisas não ficam prontas, aproveite para lavar louça e desobstruir o meio de campo. Perceba como essa tarefa se torna menos chata ao se atingir o nível ébrio iniciante. A essa altura do campeonato, você já deve ter esvaziado algumas unidades de alumínio (ainda mais se estiver calor) e vai estar dançandinho acompanhando a música. Estando só ou acompanhado, vai se sentir mais sexy e vai lembrar das letras. Não desista ainda. Invente novos passinhos bizarros. Aquele que estiver junto não vai te intimidar, é de confiança - caso contrário, não arriscaria o estômago com as suas vocações circenses. Continue bebendo, mas nunca entorne de vez. A sua autocrítica e o seu paladar devem estar de pé no final do jogo. Caso contrário, vai achar que cominho é um tempero dos deuses e até detergente pode entrar no pagode. Falando nisso, alguns acessórios merecem estar sempre à mão: vinho branco, noz moscada, pimenta calabresa ou do reino, orégano, azeite, parmesão ralado, manteiga, alho e uma bela duma luva de forno. Mais sugestões eu leio no próximo programa. Abra mais uma latinha, dê uma mijadinha e comece pela salada enquanto o principal dá aquela última dourada. Na hora da verdade, melhor abaixar um pouco o som e trocar a cevada por um suco, pra não influir no gosto e principalmente pra não comprometer os elogios que você vai ouvir. Ignore os superlativos que a sua comida receber, e diga que tava faltando mais 'alguma coisa que eu não sei bem o que é'... e lembre-se: as sobras são mais agradáveis de se comer do que aquelas outras!

Diz aí, melhor que assistir Sonia Abrahão ou TV Fama.

segunda-feira, 8 de agosto de 2005

Mais um dia ideal para os peixes-banana

Existe uma diferença brutal entre caminhar no parque de manhã e pela tarde. Especialmente no calor sujo, a manhã é infestada por aspirantes a maratonistas, crianças histéricas, babás prósperas, casais assépticos sem filhos, sexagenários perseverantes que trotam lembrando de dias melhores e arrastando um dos pés no compasso de seus corações safenados. "Ele corre mais devagar do que eu caminhando, mas deve fazer isso há anos. No mínimo, esse senhor se conhece um bocado".
Após as três horas, apesar de recolhida a folhagem, tudo ganha dimensões mais sombrias. O vento úmido dá socos no peito, me aconselhando a voltar para casa. A fauna se expande a começar pelas carpas pretas semi-apodrecidas, que acenam boas vindas com línguas-de-sogra de dentro do tanque oleoso. Maltrapilhos descalços ajoelhados nos bancos, desempregados lendo a Bíblia e casais inusitados, como um formado por um nordestino atarracado ostentando um respeitável bigode e por uma oriental calva de meia-idade, me observam como se eu quebrasse a harmonia daquele saudável mas não menos triste hospício sem acompanhamento psiquiátrico. Uma loira avermelhada acima do peso alonga suas pernas, levantando seu traseiro desproporcional. Sorri quando me cruza pela segunda e pela terceira vez, com seu maxilar anguloso e ascendência holandesa combinando de forma duvidosa com o aroma convidativo de merda dos cavalos que saltam sobre barras enferrujadas, e desaparece logo em seguida. No fim, sou coroado com uma rinha espontânea de sumô entre galos idênticos, de penas brancas e cristas vermelhas. Os dois se encaram curvados e se atracam ao terceiro sinal da campainha, sendo separados por uma sábia galinha esguia. Como testemunhas, eu e um sósia do Roberto Carlos.
Saio daquele inferno verde e úmido com o estranho desejo de que poderiam pôr em vigor algum tipo de lei que permitisse fechar a cadeado todas aquelas criaturas ali dentro. Mas a dor no joelho que desapareceu me faz mudar de idéia, assim como o suor em minha camiseta, que toma a forma de um rosto sorrindo acanhado.

sábado, 6 de agosto de 2005

Either/Or

Nada como manter um pézinho fincado no lodo. Muitos podem chamar de auto-sabotagem, de defesa instantânea; sim, claro, aqueles mesmos que tripudiam quando você baixa a guarda. Mas poucos conseguem escutar a música por baixo da água quente, sob a crosta de células mortas. Provavelmente porque ela chega à orla com pouca altura e fora do tempo da deixa. O que para a corrente comum parece mero esboço me soa aprazível, como aquela primeira voz ao telefone que encerra dias e mais dias engolindo seco. E os insistentes se arriscam dizendo um 'sim' depois de tantas recusas recebidas. Não satisfeitos, ainda têm o couro arrancado enquanto cantam em voz baixa para você dormir. Esperam a aurora apontar pelas frestas, e só então retornam com cautela para os seus santuários embolorados feitos de caixas de sapato. É quando a situação volta ao ponto de partida que as gentilezas do tormento chegam em casa e querem mais é cair de cara no macio do colchão e do travesseiro, mesmo estando cobertas de lama até os joelhos.

quarta-feira, 3 de agosto de 2005

Breve cuspida de sangue

Quando o mundo gira ao contrário e em preto e branco, as cortinas se abrem para um brinde ao silêncio. Morrem o cultivo e a compaixão, que pulam como lemingues em direção ao precipício gelado para acelerar o ciclo metafísico. Uma pequena tragédia antecipa as gargalhadas embasbacadas de gralhas que sentam na primeira fileira e fumam seus últimos recursos em charutos fedorentos. Três quartos de hora depois, as sobras são recolhidas para alimentar os satisfeitos com a poeira. Os poros se entopem como filtros de café e o ruído cego das turbinas de aeronaves encobre as pausas da respiração. Mastigar as sobras se torna um sacrifício pontiagudo. As luzes das janelas do prédio em frente se intercalam: são os vizinhos alertando em código morse. Como testemunha está o cenário azul se espreguiçando, com sua gravata cinzenta indefectível penetrando o chantilly e os arranha-céus de cera. Enquanto o vilão do chapéu preto sobe de elevador com notícias e algumas guloseimas importadas, eu abraço o ar quente da queda.

sábado, 30 de julho de 2005

Já deve ter dado para perceber, mas mesmo correndo o risco de parecer redundante, preciso confessar: tenho preconceito com blogs apesar de estar mantendo um (ok, mal e porcamente). Nada contra quem faz isso. Pelo contrário: se algum amigo que escreve resolve me mostrar, tenho curiosidade para dar uma olhada, e se tiver algo de interessante até volto outras vezes para ler textos novos. Mas não deixa de ter certa ironia a lógica do ritual, do tipo 'então cada um de nós escreve nosso próprio livro com nossas próprias memórias e contos, depois trocamos e tentamos nos conhecer um pouco mais do que convivendo'. Olhando pra mim mesmo, essa ironia fica ainda mais aguçada. Como muito gato pingado por aí, também me silencio consentindo, também sou distante. "Também sou pós-mudérno", diria a biba Caetana.
Não tenho problemas com quem publica tratados existenciais sobre a unha do pé encravada, ou quem vomita letras da Legião Urbana pela falta do que contar, ou quem pensa ser o Hunther Thompson da vez. Cada um sabe onde aperta o sapato, como diria um prezado camarada. Tudo gira na questão de como fazer, de como jogar idéias insólitas sobre o nosso pãozinho na chapa de cada dia.
O buraco, então, é mais embaixo. Como todo 'imobilista convicto' (ver post anterior), carrego um vício que não recomendo aos iniciantes: muitas vezes só por investir um bom tempo refletindo sobre determinado assunto, cria-se a sensação de ter dado cabo dele. Pronto, resolvido, next! E na realidade é uma farsa, pois o que se pede é ação. A neurose ainda vai estar ali parada na sua frente, como um segurança de boate. Blogs muitas vezes acabam reforçando essa barreira: fulano está cabreiro com o tamanho da pança, digita seu pequeno capítulo diário de auto-ajuda e sorri satisfeito, como quem acabou de eliminar a cerva da bexiga. Tá armada a arapuca. Vira simplesmente um meio de fuga.
E por mais retórico que isso possa soar, ainda gostaria de pensar que é melhor ficar vesgo olhando 2 minutos sem parar pra uma ponta de caneta, contanto que seja assinado de vez o cheque logo em seguida. Lembra do filme Ghost, quando a alma penada Patrick Swayze se concentra para dar um peteleco numa lata e tirá-la do lugar? É por aí.

quinta-feira, 28 de julho de 2005

Fratura exposta engessada

Poucas coisas me irritam e angustiam tanto quanto a sensação de imobilidade. Digo isso justamente pela tendência natural com que acabo levando as coisas, pelo menos nas minhas ações externas. É como se houvesse um campo magnético que atraísse as decisões sempre para o mesmo centro: ao invés de deixá-las tomar um caminho (ou eu mesmo trilhar um), de relaxar, abdicar ou abraçar, simplesmente conviver semanas e semanas com um punhado de problemas como se fossem um enxame de abelhas ao redor de um pau-de-sebo besuntado com mel. É puxar a cadeira de praia, sentar-se não tão confortavelmente ao lado deles e assistir de camarote a maré te engolir, secar ou a úlcera se encubar.
Recentemente uma conversa me fez pensar naquilo que cumprimos por instinto no sentido herdado, coletivo. São aqueles comportamentos da espécie que desde um vassalo feudal até uma empresária da Daslu - e incluindo eu e você - temos em algum momento da vida por enfrentar e executar, não tanto por opção mas por algum tipo de necessidade. Isso também varia e toma várias formas, passa pelas funções vitais, pelo desenvolvimento, aprendizados, rupturas e por aí vai.
Dentro desse fantasma tão vago e abstrato que a gente chama de 'instinto', me chama muita atenção a disposição cíclica que a gente tem para adaptar características de certo momento da vida em um outro bem diferente. Exemplo: quando pivete, eu e quase todos da mesma idade colecionávamos figurinhas do Campeonato Brasileiro - achava sensacional elas não serem autocolantes, o álbum ficava com as páginas grudadas e com aquele cheirão de cola Pritt. Pouco mais tarde, na adolescência, gostava de pensar que estava começando uma coleção de cds, enquanto vários amigos faziam coleção de latinhas. Hoje, apesar de ainda não ter estabelecido critérios e já ter transformado meu gosto zilhões de vezes, continuando comprando cds com grana que seria para pagar a luz ou algo do tipo. O que ainda me faz achar que é uma coleção, além daquele desejo mórbido e infinito de sempre querer mais, é o fato dos cds estarem nas prateleiras da minha parede, lado a lado, organizados por ordem alfabética. Do mesmo jeito, a minha coleção de problemas a serem resolvidos está por aí também, só que martelada com pregos oxidados, alguns ítens com uma camada de poeira por cima e alguns pendurados por cima dos outros. Mas permanece aquela essência, a necessidade (?) de agrupar antes de perceber se existe um sentido por trás da criatura remendada do Dr. Frankenstein.
Bom, não pretendo fazer dessa conversa uma punheta sem fim, até porque 'blog' é onanismo por definição, é terapia por correspondência. Também não encerrei o assunto. Mas tive uma idéia infantil que me satisfaz por ora: como naquele jogo de acertar o rabo do burro, vou vendar os olhos e escolher onde o alfinete vai espetar primeiro.

quinta-feira, 14 de julho de 2005

Ontem fui ver Guerra dos Mundos com dois amigos. Não sei nem se vale a pena fazer alguma comparação com as outras adaptações pro livro do HG Wells. A única que eu conhecia era a transmissão de rádio do Orson Welles, aquela que causou uma crise histérica coletiva entre milhares de estadunidenses desavisados. Eu fazia faculdade de Rádio e TV na época (1999), e ouvi a gravação do original durante uma aula de História do Rádio, se não me engano. Considerando a época em que isso rolou - final dos anos 30, grande depressão, Segunda Guerra iminente, etc etc -, dá pra imaginar porque tanto alarde. Agora, trazendo isso pra hoje, depois de tantos Bushes, ataques preventivos e pseudo-documentaristas bonachões na cachola, acaba sendo inevitável pensar nesse pavor do povo de lá em relação a qualquer ameaça hipotética às 'strong foundations' como algo menos temporal e mais cultural.
Pouco depois da tal aula, ganhei de presente um livro chamado Rádio e Pânico, uma coletânea de textos sobre o impacto que essa transmissão causou nos meios de comunicação. O livro vem também com uma transcrição do texto e um cd engraçado, de uma versão em português com uma interpretação que lembra aqueles disquinhos coloridos de histórias infantis. Li e ouvi alguns trechos na época, mas desde então posso dizer que não tive mais contato com nenhuma versão.
Quando soube que o filme do Spielberg iria estrear, não saí correndo pra ver. Aliás, dentre as poucas opções que a gente tinha ontem no Bristol, me apetecia mais ver Batman Begins pela segunda vez - esse sim, um filme surpreendente que fui ver sem esperar nada. A primeira e uma das poucas coisas a se dizer: tirando os efeitos especiais que nos mantêm entretidos (e que, no caso do Spilba, chega a ser covardia ostensiva), a versão 2005 não acrescenta nada. Não digo em relação à obra, mas como cinema dentro do duvidoso gênero 'ficção científica', ou qualquer coisa do tipo. Começa até que bem, tenso e opressivo, mas em pouco tempo descamba pra mesma baboseira do tipo 'patriotismo vs. fim dos tempos' que qualquer nerd de lan house já não esteja cansado de ver. Sem contar os gritinhos irritantes da filha do Tom Cruzes, que merecia ter o sangue pulverizado como teve o resto dos humanos no filme.
Saldo final: atuações pouco convincentes (Tim Robbins com o filme queimado de novo, depois do bom Sobre Meninos e Lobos), alguns bons efeitos de quem nisso já foi melhor, etês antipáticos, eu zonzo na segunda fila vendo tanta casa caindo e lanchinho depois mais divertido que as duas horas e cacetada de la película.

quarta-feira, 13 de julho de 2005

Mais uma tentativa. E mais uma vez sem essa de ficar explicando porque parar e voltar. Se eu ainda estou por aqui, antes de mais nada é para engordar as estatísticas de uns 99,9% das pessoas inconstantes que empregam algum tempo nessa coisa bizarra - por muitas vezes constrangedora - chamada 'blog' e que conseguem jogar na roda algo interessante. Quem vive em função disso, posta sei lá quantas vezes por dia ou perde tempo demais com linkzinhos e enfeitinhos e caralhinhos voadores na parede do banheiro (como diria o Lima Duarte naquele filme), obviamente já se afasta do que eu tô falando. Enfim, já tô começando a andar em círculos com poucas linhas, mas tudo isso é pra deixar claro (a mim mesmo, pelo menos) de que vou continuar voltando aqui só quando não tiver nada melhor para fazer. Ou quando se tornar inevitável. Isso pode significar tanto dez vezes ao dia quanto uma por ano. Não espero nenhuma coerência. E se por acaso alguém, ao entrar aqui, tiver uma sensação de déja vu por parecer com o que escreve qualquer outro medíocre 'blogueiro' (odeio o termo, vou substituí-lo urgentemente), tanto melhor.

Seja bem vindo (ou não).