segunda-feira, 28 de junho de 2010

Primavera Sound, segundo dia

Sexta-feira, tarde seguinte. Vigésimo oitavo dia de maio, também conhecido como um mês atrás. Baterias recarregadas, mudança de bairro barcelonense - do intenso centro à aconchegante Gràcia - e, com pulseirinhas indie anexadas ao pulso, cruzamos de novo subterraneamente a cidade rumo ao Parc del Fòrum.

A expectativa era abrir o fim de tarde com o show do Low no auditório Rockdelux, mas a fila era desanimadora. Eu estava quase me contentando com o power pop redondinho e correto do New Pornographers, que tocava no San Miguel Stage, quando chega a mensagem: "corre aqui que vai rolar o Low, estamos quase entrando". Talvez o meu momento mais Gerson da viagem. A disputa por cadeiras no auditório tinha motivo justo: o trio de Duluth, Minnesota (mesma cidade do Dylan, no extremo norte americano), tocaria na íntegra o belíssimo álbum The Great Destroyer, de 2005, cujo tema central é morte e envelhecimento. Líder e sósia de Heath Ledger, Alan Sparhawk foi arrebatador tocando guitarra e cantando (fazendo harmonias com a baterista Mimi Parker) no auditório a luzes baixas, mas não trocou uma palavra com o público entre as treze faixas do disco. No momento pareceu pouco simpático, mas os agradecimentos efusivos dele próprio no final nos fizeram concluir que a intenção do silêncio era valorizar a tensão intimista e as letras. Assim como após o show do Monotonix, no dia anterior, fiquei com a sensação de que dificilmente os shows seguintes da noite o superariam, mas por razões opostas: os americanos tangenciam um caos sutil, cheio de silêncios intermitentes e melodias entrecortadas; já a celeuma dos israelenses é empapada de suor e celebração. O bom é não precisar chegar a conclusão nenhuma sobre isso.



Apesar de nublar e passar das 20h30, ainda estava claro quando saí na direção do San Miguel Stage, onde tocava o Spoon. Já os tinha visto no Planeta Terra 2008, aqui em SP, e a performance em terras catalãs foi parecida. Com palco maior e de dia, mas despertando aquela mesma simpatia que só uma banda texana esforçada, com boas faixas, suficientemente comunicativa e com aura de coadjuvante consegue despertar. Bom para apreciar degustando aquela cerveja do dia a dia, com gosto ok, que não dá ressaca mas também não desperta paixões. Foi o que fiz.

Tempo vai, tempo vem e, após uma tentativa frustrada de ver o começo do Beach House num palco menor, me encaminho de volta ao San Miguel para conseguir um lugar privilegiado para meu primeiro show do Wilco. Abrem com "Wilco (The Song)", e lá pelas tantas as duas guitarras somem. Seguem com a monumental "I Am Trying To Break Your Heart", e dessa vez é o baixo e um dos teclados que falham, obrigando os respectivos donos das funções a improvisar umas maracas enquanto os técnicos arrumam o som. É aí que Jeff Tweedy manda a real:



Nada como ter na manga uma das músicas mais bonitas da década para salvar o anticlímax do começo. Ótima sacada! Com o P.A. arrumado, chega a ser covardia. A entrega dos seis no palco me fez rir sozinho três dias depois, dentro do avião, quando eu já abandonava a Espanha dando sequência à viagem e lembrava do prazer de experimentar ao vivo "Shot In The Arm", "Heavy Metal Drummer", "Misunderstood", "Bull Black Nova" e "I'm The Man Who Loves You", entre muitas outras. São faixas que crescem para todos os lados com pequenas entortadas de direção, com o Tweedy dando mais veemência ao cantar, com a simples presença de Nels Cline e Glenn Kotche, dois músicos filhasdaputa de tão geniais. E o que foi o público 'cantando' a longa parte instrumental de "Impossible Germany", como se saudasse a chegada do sol? Ao vivo, o Wilco é tecnicamente tão competente e desenvolto quanto o Radiohead, mas leva vantagem no calor e na empatia, na honestidade e nas imperfeições, que eles conseguem contornar com classe e humor. Um mês após o acontecido, ainda cravo como o melhor show dos três dias.

Saio dali tão desnorteado que mal percebo os vibratos fêmeos de Marc Almond, comandando um rala-coxa em outro palco ali perto. A sequência seria a correção de um lapso histórico: ver finalmente o Shellac após tê-los perdido em São Paulo, em 2008. Era a primeira banda que eu via no ATP Stage, um dos espaços mais legais do Primavera ao lado do Ray Ban Stage. Agora, não faz o menor sentido comentar algo assim se você não vai assistir a algo tão amargo e bilioso quanto Steve Albini, Bob Weston e Todd Trainer juntos em ação: um baixo demente repetindo três notas por 10 minutos como se fosse uma indústria de autopeças; um macaco superdotado surrando a bateria com precisão matemática; uma guitarra abrasiva amarrada na cintura do dono e que soa como um tubo de PVC derretendo numa frigideira; e "Fucking kill him, kill him already, kill him. Fucking kill him. I don't care if it hurts". Em poucos minutos você começa a achar sublime e divina a total falta de crença no ser humano, na simplicidade, no iogurte com granola, na yoga, em Chico Xavier e na vida rural. Shellac é coisinha linda de meu deus. E os organizadores do Primavera, que não são bestas, chamam eles quase sempre. Em determinado momento, Steve Albini pergunta: "Quem aqui viu a gente no ano passado? E em 2008? E há quatro anos??".



E a grande decepção do festival foi mesmo o Pixies. Mesmo devidamente prevenido sobre a atual decrepitude da banda ao vivo, insisti em conferir os cilíndricos Frank Black e Kim Deal desempenhando no piloto automático um set list teoricamente quase perfeito. É nítido o clima azedo entre os quatro e o som imaginário da caixa registradora. Depois de um vasto repertório com caras de cu do Frank Black, conexão zero com o público (que, cheio de boa vontade, tentava se empolgar) e execuções sumárias e sonolentas de "Dig For Fire", "Debaser" e "Velouria", bati em retirada na hora do bis atrás de cafeína. Como disse antes, essas turnês de retorno de bandas dos anos 80 e 90 são picaretagens de dois gumes. No caso do Pixies, o que dizer de uns sujeitos de meia idade que não gravam mais juntos e que, ano após ano desde 2004, se reúnem para tocar versões pau-mole das mesmas músicas? Muita, mas muita boa sorte para quem for vê-los no "nosso" Woodstock de Itu.

Eram mais de 3h00 da manhã e as pernas pediam arrego quando o Yeasayer começou a tocar no Vice Stage. Exemplares da recente leva de bandas indie com gambiarras de world music que tem como maior nome o Vampire Weekend, os nova-iorquinos agradaram muitos descolados presentes, mas me tornaram tão receptivo à suposta "diversidade etno-cultural" quanto o Clint Eastwood em Gran Torino. O horário e o aroma do ambiente, àquela altura lembrando as ladeiras olindenses pós-Carnaval, pediam um show mais consistente e menos afetado. Era hora de tomar o longo caminho de volta até a aprazível Gràcia.


Hipster e pluricultural? Me engana que eu gosto...

Nenhum comentário: