Sexta-feira, tarde seguinte. Vigésimo oitavo dia de maio, também conhecido como um mês atrás. Baterias recarregadas, mudança de bairro barcelonense - do intenso centro à aconchegante Gràcia - e, com pulseirinhas indie anexadas ao pulso, cruzamos de novo subterraneamente a cidade rumo ao Parc del Fòrum.
A expectativa era abrir o fim de tarde com o show do Low no auditório Rockdelux, mas a fila era desanimadora. Eu estava quase me contentando com o power pop redondinho e correto do New Pornographers, que tocava no San Miguel Stage, quando chega a mensagem: "corre aqui que vai rolar o Low, estamos quase entrando". Talvez o meu momento mais Gerson da viagem. A disputa por cadeiras no auditório tinha motivo justo: o trio de Duluth, Minnesota (mesma cidade do Dylan, no extremo norte americano), tocaria na íntegra o belíssimo álbum The Great Destroyer, de 2005, cujo tema central é morte e envelhecimento. Líder e sósia de Heath Ledger, Alan Sparhawk foi arrebatador tocando guitarra e cantando (fazendo harmonias com a baterista Mimi Parker) no auditório a luzes baixas, mas não trocou uma palavra com o público entre as treze faixas do disco. No momento pareceu pouco simpático, mas os agradecimentos efusivos dele próprio no final nos fizeram concluir que a intenção do silêncio era valorizar a tensão intimista e as letras. Assim como após o show do Monotonix, no dia anterior, fiquei com a sensação de que dificilmente os shows seguintes da noite o superariam, mas por razões opostas: os americanos tangenciam um caos sutil, cheio de silêncios intermitentes e melodias entrecortadas; já a celeuma dos israelenses é empapada de suor e celebração. O bom é não precisar chegar a conclusão nenhuma sobre isso.
Apesar de nublar e passar das 20h30, ainda estava claro quando saí na direção do San Miguel Stage, onde tocava o Spoon. Já os tinha visto no Planeta Terra 2008, aqui em SP, e a performance em terras catalãs foi parecida. Com palco maior e de dia, mas despertando aquela mesma simpatia que só uma banda texana esforçada, com boas faixas, suficientemente comunicativa e com aura de coadjuvante consegue despertar. Bom para apreciar degustando aquela cerveja do dia a dia, com gosto ok, que não dá ressaca mas também não desperta paixões. Foi o que fiz.
Tempo vai, tempo vem e, após uma tentativa frustrada de ver o começo do Beach House num palco menor, me encaminho de volta ao San Miguel para conseguir um lugar privilegiado para meu primeiro show do Wilco. Abrem com "Wilco (The Song)", e lá pelas tantas as duas guitarras somem. Seguem com a monumental "I Am Trying To Break Your Heart", e dessa vez é o baixo e um dos teclados que falham, obrigando os respectivos donos das funções a improvisar umas maracas enquanto os técnicos arrumam o som. É aí que Jeff Tweedy manda a real:
Nada como ter na manga uma das músicas mais bonitas da década para salvar o anticlímax do começo. Ótima sacada! Com o P.A. arrumado, chega a ser covardia. A entrega dos seis no palco me fez rir sozinho três dias depois, dentro do avião, quando eu já abandonava a Espanha dando sequência à viagem e lembrava do prazer de experimentar ao vivo "Shot In The Arm", "Heavy Metal Drummer", "Misunderstood", "Bull Black Nova" e "I'm The Man Who Loves You", entre muitas outras. São faixas que crescem para todos os lados com pequenas entortadas de direção, com o Tweedy dando mais veemência ao cantar, com a simples presença de Nels Cline e Glenn Kotche, dois músicos filhasdaputa de tão geniais. E o que foi o público 'cantando' a longa parte instrumental de "Impossible Germany", como se saudasse a chegada do sol? Ao vivo, o Wilco é tecnicamente tão competente e desenvolto quanto o Radiohead, mas leva vantagem no calor e na empatia, na honestidade e nas imperfeições, que eles conseguem contornar com classe e humor. Um mês após o acontecido, ainda cravo como o melhor show dos três dias.
Saio dali tão desnorteado que mal percebo os vibratos fêmeos de Marc Almond, comandando um rala-coxa em outro palco ali perto. A sequência seria a correção de um lapso histórico: ver finalmente o Shellac após tê-los perdido em São Paulo, em 2008. Era a primeira banda que eu via no ATP Stage, um dos espaços mais legais do Primavera ao lado do Ray Ban Stage. Agora, não faz o menor sentido comentar algo assim se você não vai assistir a algo tão amargo e bilioso quanto Steve Albini, Bob Weston e Todd Trainer juntos em ação: um baixo demente repetindo três notas por 10 minutos como se fosse uma indústria de autopeças; um macaco superdotado surrando a bateria com precisão matemática; uma guitarra abrasiva amarrada na cintura do dono e que soa como um tubo de PVC derretendo numa frigideira; e "Fucking kill him, kill him already, kill him. Fucking kill him. I don't care if it hurts". Em poucos minutos você começa a achar sublime e divina a total falta de crença no ser humano, na simplicidade, no iogurte com granola, na yoga, em Chico Xavier e na vida rural. Shellac é coisinha linda de meu deus. E os organizadores do Primavera, que não são bestas, chamam eles quase sempre. Em determinado momento, Steve Albini pergunta: "Quem aqui viu a gente no ano passado? E em 2008? E há quatro anos??".
E a grande decepção do festival foi mesmo o Pixies. Mesmo devidamente prevenido sobre a atual decrepitude da banda ao vivo, insisti em conferir os cilíndricos Frank Black e Kim Deal desempenhando no piloto automático um set list teoricamente quase perfeito. É nítido o clima azedo entre os quatro e o som imaginário da caixa registradora. Depois de um vasto repertório com caras de cu do Frank Black, conexão zero com o público (que, cheio de boa vontade, tentava se empolgar) e execuções sumárias e sonolentas de "Dig For Fire", "Debaser" e "Velouria", bati em retirada na hora do bis atrás de cafeína. Como disse antes, essas turnês de retorno de bandas dos anos 80 e 90 são picaretagens de dois gumes. No caso do Pixies, o que dizer de uns sujeitos de meia idade que não gravam mais juntos e que, ano após ano desde 2004, se reúnem para tocar versões pau-mole das mesmas músicas? Muita, mas muita boa sorte para quem for vê-los no "nosso" Woodstock de Itu.
Eram mais de 3h00 da manhã e as pernas pediam arrego quando o Yeasayer começou a tocar no Vice Stage. Exemplares da recente leva de bandas indie com gambiarras de world music que tem como maior nome o Vampire Weekend, os nova-iorquinos agradaram muitos descolados presentes, mas me tornaram tão receptivo à suposta "diversidade etno-cultural" quanto o Clint Eastwood em Gran Torino. O horário e o aroma do ambiente, àquela altura lembrando as ladeiras olindenses pós-Carnaval, pediam um show mais consistente e menos afetado. Era hora de tomar o longo caminho de volta até a aprazível Gràcia.
Hipster e pluricultural? Me engana que eu gosto...
segunda-feira, 28 de junho de 2010
segunda-feira, 21 de junho de 2010
Primavera Sound, primeiro dia
Há duas semanas cheguei de uma das melhores viagens da minha vida e vem uma ponta de vergonha por não conseguir respiros para reativar a casa das máquinas aqui e rabiscar algumas linhas. O primeiro recorte já era certo e óbvio desde que sentei por algumas horas em Barajas, Madrid, esperando a última perna dos voos: um dos principais festivais europeus de primavera-verão. Se escrever apenas isso não parece muito, digo que o festival é um acontecimento. Época do ano (final de maio) em que gente de toda a parte começa a descer em direção ao Mediterrâneo, clima em Barcelona já o melhor possível - em todos os sentidos. Mas chegando numa quinta-feira, primeiro dia, ao Parc del Fòrum, instalado estrategicamente na ponta da orla da praia da linda cidade, vejo que o buraco é bem mais embaixo.
E já começa com uma das apresentações mais intensas dos três dias: Monotonix, três israelenses cabeludaços causando confusão no Vice Stage, palco bem perto do mar. O som, um proto-punk-stoner-garageiro, ficava quase em segundo plano. Devem existir umas 236 bandas que soam parecido, mas poucas impelem tanta interação com o público. O kit ultrabásico é montado no chão mesmo, entre as pessoas, e o negócio é tentar chegar perto do epicentro. Mal começa e já é um tal de camisa voando, levadas de bateria quebradas e muita, muita gente dançando e dando risada das macaquices do vocalista, um quarentão que traja só bermuda Adidas e parece um híbrido de GG Allin com Jesus Cristo. Umas cinco "músicas" depois, reparo que o joelho do sujeito está esfolado, com filetes de sangue correndo. Os mais voluntariosos o levantam o tempo todo, usando às vezes o surdo da bateria como base. Mais alguns minutos e o baterista também é carregado pelo alto, sem parar de tocar, com banquinho e tudo (!). Lá pelas tantas, já estão todos cantando em iídiche a pedido do carismático tio barbudo. Impossível não se divertir.
Para dar uma ideia:
Na sequência, corro até o palco San Miguel (o principal do festival) para conferir o velho finório Mark E. Smith e seus atuais estagiários, a.k.a. The Fall. A expectativa é baixa: gosto muito, mas a banda não tem fama de mandar bem ao vivo; aliás, você mal sabe quem toca no Fall sem ser o velho mutley Smith, cinquentão com cara e voz de septagenário. A graça é exatamente aguardar o que reserva o humor inóspito do velho uva-passa no dia, o que eventualmente pode entortar o pós-punk reto tocado. Já ouvi relatos hilários de desfechos dos shows deles, mas desta vez ele simplesmente fecha mais a cara, para de cantar, põe no talo todos os amplificadores enquanto os outros ainda desempenham e abandona o palco. Conclusão: talvez o melhor show ruim do festival.
Pausa para cervejas, banheiro, circuladas, camaradagens, crepes, entressafra de bandas boas. Sem contar o hypado e disputadíssimo The XX, que, à distância, fez a trilha sonora insossa desse meio-tempo. Sem perceber, era hora do meu terceiro show do Superchunk na vida (sendo o anterior há exatamente 10 anos), também no palco San Miguel. O voz-fina Mac e seus amigos, mesmo tendo voltado de uma parada longa, continuam com gás. É hit indie atrás de hit indie, todos tocados com empolgação pela banda e recebidos com deleite pelo público. E tome "Driveway To Driveway", "Like A Fool", "First Part", "Slack Motherfucker", "Hyper Enough" e "Precision Auto" (esta com participação do vocalista-bolota do Les Savy Fav), para a felicidade de saudosistas como eu. Se pudesse, veria todo ano.
Após intervalo curto, é hora de rumar até o Ray Ban Stage, um dos palcos mais confortáveis, com som perfeito e bons campos de visão. A bola da vez acaba sendo o fino do dia: a apresentação do coletivo/cabide-de-emprego canadense Broken Social Scene é ao mesmo tempo etérea e energética, com muita gente no palco aparecendo, sumindo e retornando, se revezando nos instrumentos e nos vocais. O clima é de comunhão. Uma hora, contei 12 pessoas. É difícil não simpatizar com o quase-hippie gente boa Kevin Drew, que finge coordenar a bagunça. Faixas dos dois maravilhosos álbuns mais recentes (sendo o último deste ano, Forgiveness Rock Record) escorrem feito água gelada das Niagara Falls, cheias de guitarras zunindo, pequenos improvisos (no fundo, os caras tocam pra cacete), saludos ao público e melodias bonitas, redondaças. A ausência da Feist, que às vezes participa da banda, nem foi sentida.
Para fechar o dia - pelo menos o meu, já que a festa nunca termina -, a aguardada volta do Pavement. Palco San Miguel insuportavelmente lotado, mas vamo que vamo. Stephen Malkmus, que é temperamental mas não veio a passeio, já manda de cara "Cut Your Hair", ganhando o indie, o druggy, o desavisado, o vendedor de cerveza. A comoção ainda é moderada, embora seja bonito ver tudo aquilo que se espera dos cinco slackers: as ironias, o set list perfeito, Malkmus tocando quase sempre com a correia fora do ombro, o pseudo-baterista e animador de auditório Bob Nastanovitch berrando feito um alucinado. Mesmo que a volta seja caça-níquel, há formas e formas de se fazer isso, e o Pavement está ali nitidamente se divertindo com o momento (voltarei a isso no próximo post). É a redenção daquela displicência deliciosamente calculada, típica da banda. Tudo perfeito, mas quando chega minha favorita, "In The Mouth A Desert", percebo que a viagem está paga assim que entram os primeiros uivos que servem de refrão.
A segunda e a terceira parte chegam logo, logo - antes da próxima boa gig na sua cidade.
E já começa com uma das apresentações mais intensas dos três dias: Monotonix, três israelenses cabeludaços causando confusão no Vice Stage, palco bem perto do mar. O som, um proto-punk-stoner-garageiro, ficava quase em segundo plano. Devem existir umas 236 bandas que soam parecido, mas poucas impelem tanta interação com o público. O kit ultrabásico é montado no chão mesmo, entre as pessoas, e o negócio é tentar chegar perto do epicentro. Mal começa e já é um tal de camisa voando, levadas de bateria quebradas e muita, muita gente dançando e dando risada das macaquices do vocalista, um quarentão que traja só bermuda Adidas e parece um híbrido de GG Allin com Jesus Cristo. Umas cinco "músicas" depois, reparo que o joelho do sujeito está esfolado, com filetes de sangue correndo. Os mais voluntariosos o levantam o tempo todo, usando às vezes o surdo da bateria como base. Mais alguns minutos e o baterista também é carregado pelo alto, sem parar de tocar, com banquinho e tudo (!). Lá pelas tantas, já estão todos cantando em iídiche a pedido do carismático tio barbudo. Impossível não se divertir.
Para dar uma ideia:
Na sequência, corro até o palco San Miguel (o principal do festival) para conferir o velho finório Mark E. Smith e seus atuais estagiários, a.k.a. The Fall. A expectativa é baixa: gosto muito, mas a banda não tem fama de mandar bem ao vivo; aliás, você mal sabe quem toca no Fall sem ser o velho mutley Smith, cinquentão com cara e voz de septagenário. A graça é exatamente aguardar o que reserva o humor inóspito do velho uva-passa no dia, o que eventualmente pode entortar o pós-punk reto tocado. Já ouvi relatos hilários de desfechos dos shows deles, mas desta vez ele simplesmente fecha mais a cara, para de cantar, põe no talo todos os amplificadores enquanto os outros ainda desempenham e abandona o palco. Conclusão: talvez o melhor show ruim do festival.
Pausa para cervejas, banheiro, circuladas, camaradagens, crepes, entressafra de bandas boas. Sem contar o hypado e disputadíssimo The XX, que, à distância, fez a trilha sonora insossa desse meio-tempo. Sem perceber, era hora do meu terceiro show do Superchunk na vida (sendo o anterior há exatamente 10 anos), também no palco San Miguel. O voz-fina Mac e seus amigos, mesmo tendo voltado de uma parada longa, continuam com gás. É hit indie atrás de hit indie, todos tocados com empolgação pela banda e recebidos com deleite pelo público. E tome "Driveway To Driveway", "Like A Fool", "First Part", "Slack Motherfucker", "Hyper Enough" e "Precision Auto" (esta com participação do vocalista-bolota do Les Savy Fav), para a felicidade de saudosistas como eu. Se pudesse, veria todo ano.
Após intervalo curto, é hora de rumar até o Ray Ban Stage, um dos palcos mais confortáveis, com som perfeito e bons campos de visão. A bola da vez acaba sendo o fino do dia: a apresentação do coletivo/cabide-de-emprego canadense Broken Social Scene é ao mesmo tempo etérea e energética, com muita gente no palco aparecendo, sumindo e retornando, se revezando nos instrumentos e nos vocais. O clima é de comunhão. Uma hora, contei 12 pessoas. É difícil não simpatizar com o quase-hippie gente boa Kevin Drew, que finge coordenar a bagunça. Faixas dos dois maravilhosos álbuns mais recentes (sendo o último deste ano, Forgiveness Rock Record) escorrem feito água gelada das Niagara Falls, cheias de guitarras zunindo, pequenos improvisos (no fundo, os caras tocam pra cacete), saludos ao público e melodias bonitas, redondaças. A ausência da Feist, que às vezes participa da banda, nem foi sentida.
Para fechar o dia - pelo menos o meu, já que a festa nunca termina -, a aguardada volta do Pavement. Palco San Miguel insuportavelmente lotado, mas vamo que vamo. Stephen Malkmus, que é temperamental mas não veio a passeio, já manda de cara "Cut Your Hair", ganhando o indie, o druggy, o desavisado, o vendedor de cerveza. A comoção ainda é moderada, embora seja bonito ver tudo aquilo que se espera dos cinco slackers: as ironias, o set list perfeito, Malkmus tocando quase sempre com a correia fora do ombro, o pseudo-baterista e animador de auditório Bob Nastanovitch berrando feito um alucinado. Mesmo que a volta seja caça-níquel, há formas e formas de se fazer isso, e o Pavement está ali nitidamente se divertindo com o momento (voltarei a isso no próximo post). É a redenção daquela displicência deliciosamente calculada, típica da banda. Tudo perfeito, mas quando chega minha favorita, "In The Mouth A Desert", percebo que a viagem está paga assim que entram os primeiros uivos que servem de refrão.
A segunda e a terceira parte chegam logo, logo - antes da próxima boa gig na sua cidade.
Assinar:
Postagens (Atom)